Comemoração do 5 de Outubro de 1910

Discurso proferido em 5 de Outubro de 2001 por Eugénio Óscar Filipe de Oliveira, Grão-Mestre do Grande Oriente Lusitano - Maçonaria Portuguesa.

Eugénio Óscar Filipe de Oliveira, 
Grão-Mestre do G.·. O.·. L.·. - Maçonaria Prtuguesa

Cidadãs e Cidadãos,

Em tempos de actos terroristas e de ameaças à liberdade e à segurança de um mundo que ainda há pouco celebrava os cinquenta anos da Declaração Universal dos Direitos do Homem, urge relembrar, ainda com mais força, vigor e convicção, a superioridade dos valores republicanos.

E que valores são esses tão tragicamente expostos à barbárie assassina de bandos funcamentalistas, protegidos e apoiados por Estados confessionais e teocráticos?

A liberdade, sem dúvida e antes de mais. A liberdade de viver de acordo com as convicções de cada um. A liberdade de "poder fazer tudo o que não prejudica outrém", como singelamente proclamava o Artº II da Declaração de 1789. A liberdade por que tantos de nós nos batemos ao longo das nossas vidas e por que tantos outros morreram nos campos de batalha desse violento século XX. A liberdade que, para Antero de Quental, se não era tudo, era, pelo menos, "o primeiro passo para que tudo se alcance".

Mas, também, a igualdade dos cidadãos em direitos e deveres perante a lei, sem discriminações de qualquer espécie e, particularmente, de natureza social, étnica e religiosa. A igualdade, que é incompatível com os privilégios de nascimento e, por consequência, com a instituição monárquica. A igualdade, que repudia o racismo. A igualdade, que confere a todas as confissões religiosas os mesmo direitos e os mesmo deveres. A igualdade, sem a qual não há verdadeira liberdade, nem verdadeira justiça.

Mas, também e ainda a fraternidade que nos desvenda o horizonte de uma natureza universal, acima das diferenças entre culturas, povos ou nações. A fraternidade que nos deve levar a execrar as xenofobias e a encarar os desafios do multiculturalismo e das migrações, com espírito aberto e tolerante, no respeito, porém e sempre, pela dimensão universal dos Direitos do Homem.

Estes são os grandes valores éticos capazes de unir a Humanidade e que, por isso, vieram a ser traduzidos nas sucessivas Declarações de Direitos até à Carta das Nações Unidades em 1948. E estes são, igualmente, os valores que todos os totalitarismos, integrismos e fundamentalismos - religiosos ou ideológicos - abominam e procuram destruir por todos os meios ao seu alcance.

Ao instrumentalizarem os Estados e a violência de bandos organizados de terroristas em agentes privilegiados para imporem as suas ideias, esses fundamentalismos retomam a mais retrógada das tradições da história da humanidade - uma tradição de obscurantismo e cegueira, que o racionalismo das Luzes combateu com determinação e que a modernidade, julgávamos nós, estaria em vias de extirpar.

Infelizmente, sabemos que esse combate entre as Luzes e as Trevas está longe de findar. Em maior ou menor grau, ei-lo que prossegue, que à escala planetária, envolvendo um grau de ameaças eperigos até há pouco dificilmente imagináveis, que a escalas mais modestas, sempre que presenciamos tentativas de recuperação de privilégios corporativos ou de condicionamento da acção do Estado democrático por poderes fátuos que lhe são exteriores.

Como afirmava recentemente o Senhor Presidente da República, em mensagem enviada à Assembleia da República: "Importa igualmente, sobretudo num momento em que a razão deve prevalecer sobre as emoções, evitar a tentação de confundir o terrorismo internacional e o seu ódio fanático com uma região, com uma cultura ou com uma religião. Não é preciso ter uma memória histórica muito longa para reconhecer que o fanatismo e o fundamentalismo não são exclusivos de nenhuma região, de nenhuma cultura, de nenhuma religião. A tolerância, o respeito pelas minorias e pela diferença devem continuar a ser apanágio das sociedades abertas".

Por isso, devemos estar atentos aos menores sinais de arrogância, que traduzam o apego a insuportáveis estatutos de privilégio e a visões teocráticas da sociedade. Por isso, devemos estar preparados para defender e aprofundar, a todo o momento, o princípio da laicidade, que representa o principal antídoto, no plano jurídico-institucional, contra a confusão fundamentalista entre o poder clerical e o poder político.

Ao estabelecer uma clara distinção entre os valores comuns da esfera pública e os valores ou convicções particulares, que devem permanecer na esfera privada, a laicidade assegura a liberdade de consciência e o respeito por todas as crenças, impedindo o domínio de qualquer delas sobre as restantes, por mais maioritária que pretenda ser. Surge, por isso, como a garantia última da paz religiosa e da paz civil.

Não podemos, por conseguinte, concordar com uma lei da liberdade religiosa que acaba, na prática, por atribuir mais direitos a uma determinada confissão do que às outras, em função do seu carácter maioritário e do seu peso histórico. Trata-se de um atentado flagrante ao valor da igualdade de direitos, base matricial do Estado Republicano. O princípio das maiorias destina-se a regular o exercício do poder político e do poder civil, nunca o da relação entre o Estado e as igrejas e muito menos o da relação entre as próprias comunidades religiosas.

Como também não podemos pactuar com a Concordata de 1940, filha de uma época de promiscuidade de interesses entre um Estado ditatorial e uma Igreja clerical. Foi nesta mesma época que a Santa Sé / "Estado do Vaticano" estabeleceu outras Concordatas com o governo nazi de Hitler, com o governo colaboracionista de Vichy e com os governos fascista de Mussolini e nacional-católico de Franco.

Mais do que revista, a Concordata deve ser pura e simplesmente abolida, por não se conceber um acordo entre um Estado Democrático e um dos últimos Estados absolutistas do Mundo, o "Estado" do Vaticano, que teve origem, em 1929, no Tratado de Latrão assinado pela Santa Sé e pelo fascista Mussolini.

Qualquer outra solução não deixará de representar um clamoroso entorse ao princípio da laicidade, que urge cada vez mais salvaguardar, como garantia da liberdade religiosa e da paz civil, que cumpre garantir no Estado Democrático gerado pela Revolução de Abril.

Um Estado em que as Escolas e Universidades públicas não têm verbas para fazer face aos seus encargos e o Instituto Superior Técnico está à beira da ruptura financeira; em que a Saúde se depara com múltiplos e graves problemas; em que as pensões de reforma se encontram degradadas e com futuro incerto; e que o Relatório sobre o Desenvolvimento Humano da ONU mostra ser o país menos desenvolvido da Europa, não pode, assim, este Estado, subsidiar a Universidade Católica e outros estabelecimentos de ensino da Igreja, nem isentar de qualquer imposto ou contribuição geral ou local a Igreja Católica e o seu clero.

E a Igreja Católica, apesar disso ainda afirma ter sido espoliada no seu património pela República. Que memória tão curta que esquece o seu longo e trágico rol de espoliações exercido ao longo dos séculos!

A tibieza de que os sucessivos governos vêm dando provas em relação às exigências da Igreja Católica não augura, porém, nada de bom. Oxalá o necessário sobressalto público, que os tempos exigem, em torno dos valores republicanos e laicos, comece a dar os seus frutos.

Não podemos admitir, em caso algum, que, no Portugal de Abril e mais de noventa anos após a implantação da República, a Igreja Católica se venha arrogar o monopólio das consciências e da moral pública, como prenunciava uma recente nota pastoral dos bispos portugueses.

Surpreendentemente, ou talvez não, à tibieza perante a Igreja Católica vêm os sucessivos governos contrapondo uma displicente atitude de menosprezo pelas Forças Armadas e de subalternização das questões da Defesa Nacional

A pretexto da contenção da despesa pública, o actual governo tem-se mostrado particularmente incapaz de redefinir, em devido tempo, o conceito estratégico da defesa, de forma a racionalizar, rapidamente, os recursos em homens e equipamentos das Forças Armadas.

Paralelamente, o actual Governo não tendo sabido dar provas de público reconhecimento pelo elevado sentido de missão por que estas têm pautado a sua actuação, apesar das carências de toda a ordem que tanto as tem afectado.

Oxalá, também aqui, os alertas de uma ordem democrática ameaçada à escala planetária, tenham o condão de revalorizar o esteio do Estado republicano e laico que continuam a ser as suas Forças Armadas, com elevado sentido patriótico e empenhamento na defesa da soberania nacional e, na cooperação internacional, para preservar os grandes valores do Humanismo Universal.

Republicanas e republicanos, cidadãs e cidadãos,

Fomos testemunhas, no dia 11 de Setembro, do mais violento e cobarde acto de terrorismo até hoje perpetrado.

São principalmente os fundamentalismos religiosos, que sejam islâmicos, católicos, protestantes, ortodoxos ou quaisquer outros, que estão na origem destas guerras de terceiro tipo. Enquanto existirem fanatismos religiosos ou étnicos haverá alguém que se arrogue possuidor da verdade absoluta, haverá alguém que se arrogue o direito a qualquer acto, por mais violento e cruel que seja, para afirmar a sua supremacia, o seu poder.

A humanidade não terá paz enquanto os grandes princípios e valores do republicanismo laico não se implantarem firmemente, em todos os cantos do mundo. São esses princípios e valores que garantem a diversidade e o mútuo respeito entre todas as crenças e convicções, entre todos os homens e mulheres do universo.

São esses princípios e valores que poderão pôr fim aos desmandos de uma globalização sem freio, exclusivamente comandada por poderosos interesses financeiros sem rosto, que vêm agravando as desigualdades entre os povos.

São esses princípios e valores que poderão concorrer para extirpar as raízes da injustiça e do desespero, que alimentam ódios e fanatismos de toda a espécie. São esses princípios e valores que deverão levar à abolição dos Estados confessionais e teocráticos, que se erguem, hoje, como a principal ameaça à paz e aos direitos dos povos.

Orgulhosos dos princípios e valores que protagonizamos, proclamemos então bem alto a sua flagrante actualidade e indispensabilidade nos tempos conturbados que o planeta hoje vive! O Cinco de Outubro não é nem nunca foi para nós uma simples romagem de saudade e homenagem aos heróis de 1910. O Cinco de Outubro foi sempre, e terá de continuar a ser, um alerta para o combate a todas as tentativas de esmagamento dos valores republicanos, democráticos e laicos, venham elas de onde vierem.

Viva a República!

Viva a Democracia!

Viva o Estado Laico!

Viva Portugal!